A PROMESSA




          O Diário de Leonor

12 De Agosto: Hoje é mais um dia internada no hospital. Estou aqui porque tenho cancro. Se alguém me visse neste momento, notaria pela cabeça rapada. Na ala dos doentes com doenças crónicas, os quartos são para duas pessoas cada. Infelizmente, não tenho ninguém no meu quarto. Por outro lado, não desejo a ninguém tão mal terrível. Comecei a quimioterapia na semana passada.

14 De Agosto: Ontem chegou uma menina mais velha que ficou no meu quarto. Ela é muito simpática.
            Quando a porta se abriu, estava à espera de ver o meu médico, mesmo estranhando que ele não me costumava vir ver àquela hora. Por entre a porta apareceu o meu médico e uma menina, que pensei que fosse mais velha. E tinha razão:
            - Leonor, esta é a Júlia. Tem mais três anos que tu.
            De resto, não eram precisas mais apresentações, ambas sabíamos por que estávamos ali.
            - Olá – disse, com um sorriso. Notei que ela não era uma pessoa muito tímida. Por minha vez, esforcei-me para dizer um “olá” normal.
            Nesse dia, já tinha feito a quimio e pelo que ela me contou, também. Ficámos a falar até bastante tarde. Soube bem falar com alguém sem ser a família, sem me perguntar constantemente se estou bem.
            P.S.  –  Se alguma vez, por alguma razão, ler este diário, eu tenho 13 anos.

17 De Agosto: Com o que aconteceu nos últimos dias, não me lembrei de escrever no meu diário. Vou tentar relatar tudo o que aconteceu, o mais próximo da realidade.
            Era 15 de Agosto e estávamos a jantar no refeitório. Eu não tinha muita fome por causa da quimioterapia que fazia o meu estômago andar às voltas, mas tentei comer um pouco. Provavelmente éramos a única ala do hospital que comia comida decente.
            - Achas que já sabem quem é que roubou os comprimidos de aspirina? – perguntou-me a Júlia. Agora não se falava de outra coisa.
            - Não.
            Ela olhou para mim por um instante – Sentes-te bem?
            - Não.
            Ela pegou-me pelo braço e acompanhou-me até à casa-de-banho. Isto já não é novidade para mim. Agora com a quimio tem sido cada vez mais frequente o mal-estar e os vómitos. Aliás, só não escrevi ontem o que aconteceu dia 15 porque passei o dia todo na casa-de-banho.
            Quando acabei de vomitar, ouvimos um barulho estranho de alguém a cair. Fomos ver e estava uma miúda deitada no chão, com um frasco de aspirinas ao pé da mão dela. Comecei a sentir-me mal. Não sei o que me deu, mas comecei a gritar, completamente histérica. A Júlia arrastou-me para fora dali, enquanto foi chamar alguém para ir à casa-de-banho.
            Entrámos no nosso quarto e ela tentou acalmar-me. De repente, deu-me uma estalada, fazendo com que finalmente parasse de gritar. Sentei-me na cama, quase a chorar.
            - Olha para mim – olhei-lhe nos olhos – sei que é duro ver alguém assim, mas tens de esquecer... Não! Olha para mim! Eu já estava noutro hospital antes de vir para aqui e posso garantir-te que talvez mais coisas destas aconteçam... – nesse momento ela parou e sentou-se ao meu lado – Mas posso prometer-te que vamos ser as pessoas mais felizes do mundo até morrermos!
            Olhei para ela. Ela tinha dito aquilo tudo de uma maneira que ninguém iria duvidar dela. Apertámos os dedos mindinhos para selar a promessa.


          O Diário De Júlia

18 De Agosto: A Leonor deu-me esta sugestão e decidi começar a escrever um diário. Passei quase toda a noite passada a pensar em algo que fosse divertido. Então, de manhã, antes de Leonor acordar, fui procurar o nosso médico para pedir autorização para escrevermos, desenharmos e fazermos o que quiséssemos com as paredes do nosso quarto. Depois de muito suplicar, ele concordou. Sabia que havia umas latas de tinta que não foram utilizadas quando estavam a fazer obras de recuperação e por isso fui buscar duas. Quando cheguei ao quarto, já a Leonor tinha acordado.
                  - Que é isso?
          - São duas latas de tinta – respondi, enquanto as abria – deixaram-nos fazer o que quiséssemos com as paredes.
                  Ela sorriu, achando a ideia brilhante. Mas depois, olhou em volta.
                  - Mas assim podemos sujar alguma coisa...
             Olhámos as duas uma para a outra e pusemos mãos à obra. Juntámos as duas camas e afastámos algumas coisas para que tivéssemos uma parede livre. As camas ficaram voltadas para a parede livre, para que nos pudéssemos deitar e olhar para a parede que agora estava livre.
            Quando damos por nós, era hora de almoço. Depois de almoço, fomos para o quarto e começámos a pintar o que nos apetecesse. Descobri que a Leonor tem dotes de pintora!
                Depois, fomos fazer quimioterapia e apareceram e apareceram os pais de Leonor por lá. São bastante simpáticos. É pena os meus pais nãos se preocuparem assim comigo. Ainda me lembro bem do dia em que o meu pai me deixou a mim e à minha mãe por causa da minha doença, como se fosse ontem. A partir daí, a minha mãe deixou-me de dar tanta atenção e ainda não falei com ela desde que fui internada no hospital. Talvez eles nunca me tenham amado. Ainda não contei nada disto à Leonor, tenho medo que ela tenha pena de mim...

20 De Agosto: Tínhamos acabado de almoçar. A Leonor estava a fazer um desenho qualquer na parede e eu estava deitada, a olhar para o tecto, a pensar. Tinha sido uma boa ideia a que eu arranjei, mas depressa nos iríamos fartar.
            Estava a pensar com os meus botões, quando alguém abre a porta. Levantei-me e ambas olhámos para a porta.
                - Olá, sou o Rui. Vou fazer voluntariado durante 3 semanas...
               - Sê bem-vindo – disse a Leonor, mas não com muito entusiasmo, e virou-se para continuar a pintar.
               - Ela é um pouco tímida. Com o tempo, falará mais contigo.
               - OK.
               - Que tipo de voluntariado?
               - Ajudar no que for preciso...
               A porta abre-se e aparece o nosso médico:
               - Rui, preciso que venhas aqui comigo.
               Quando a porta se voltou a fechar, sentei-me ao pé dela.
               - Ele é giro...
               - É... Pelo menos tem cabelo.
               - Ui, já vi que estás mal humorada...
               - Só estou maldisposta.
            Levantou-se e saiu. Olhei para a parede e vi que ela tinha riscado o desenho que estava a fazer. Acho que ela não achou muita graça ao voluntário.


O Diário de Rui

20 De Agosto: Quando fechámos a porta atrás de nós e nos começámos a encaminhar para o gabinete do médico, ele começou a dizer o que pretendia que fizesse nas 3 semanas que ali estaria.
            - Quero que sigas de perto aquelas duas raparigas – abriu a porta e entrámos no seu gabinete – Sabes, é que elas viram uma pessoa a suicidar-se aqui no hospital. Sei que negariam qualquer psicólogo. Por isso, quero que te tornes amigo delas para saber se está tudo bem com elas... É claro que não quero que faças só isso. Quando for necessário, ou a confusão for muita, quero que ajudes as enfermeiras nas urgências.
              - Sim, doutor.
            - Começas a trabalhar amanhã. Já vi que já exploraste um bocado as instalações... Por isso acho que não é preciso nenhuma visita guiada.
            Acenei a cabeça, para concordar com ele. Apertámos as mãos e saí.



21 De Agosto: Hoje de manhã, fui ter com a Leonor e a Júlia quando estavam a tomar o pequeno-almoço.

            - Como é que estão?
            - Bem – respondeu a Júlia. Olhei para Leonor e só me respondeu com um encolher de ombros, sem me olhar.
            - Bem, eu tenho de ir à casa-de-banho, já volto.
            Aquela era uma boa oportunidade de meter conversa com Leonor.
            - Quantos anos tens?
            - 13 e tu?
            - 23.
            Depois, fez-se um daqueles silêncios aterradores. Para tentar quebrar aquele silêncio, fui fazendo perguntas.
            - Do que gostas?
            - Música... – olhou para mim e esboçou um sorriso – e dança.
            Sorri também, parecia que já estava disposta a conversar.
            - Sabes tocar algum instrumento?
            - Guitarra portuguesa.
            - Eu sei tocar guitarra... normal. Tens a guitarra contigo?
            - Não. Aprendi a tocar numa da minha tia.
            Entretanto, chega a Júlia.
            - De que estavam a falar?
            - De música.
            - Eu sei cantar, quer dizer, mais ou menos.
            - Não sejas modesta, cantas bem...
            - Estou a gostar da conversa, mas tenho de ir para as urgências.
            Saí e fui ter às urgências. Mais tarde, por volta da hora do almoço, fui ter com o doutor, para lhe contar que estava tudo bem com elas as duas. No entanto, quis que continuasse de olho nelas.
            Fui almoçar a casa e aproveitei para levar a guitarra comigo. Fui ter com elas à sala de quimioterapia e cantámos umas canções para que o tempo passasse mais depressa.

23 De Agosto: Hoje estava a ajudar o pessoal das urgências, ao balcão, quando vejo a Leonor a sentar-se em cima dele.
            - Precisava da tua ajuda...
            - Para quê? – perguntei, mecanicamente, enquanto trabalhava no computador.
            - Ela faz anos amanhã e achei que pudéssemos fazer uma surpresa...
            Olhei para ela, parando o que estava a fazer.
            - O que queres fazer?
          - Não sei, talvez falávamos com os médicos e enfermeiras e dávamos uma mini festa surpresa.
            - Acho uma óptima ideia!
            E continuámos a falar de como faríamos a festa, enquanto eu trabalhava. Depois, ela foi falar com os médicos e enfermeiras para os por ao corrente da situação.

          O Diário De Júlia

24 De Agosto: Hoje acordei e fomos as duas tomar o pequeno-almoço. Comecei a achar estranho ele ainda não me ter dado os parabéns. Fui falando de maneira a que ela se lembrasse dos meus anos, mas de forma discreta. Mesmo assim, não dava sinais de compreender.
            Depois de almoço, como era dia de greve de enfermeiros, fomos ajudar no que sabíamos nas urgências. Nem o Rui se lembrava de me dar os parabéns, ou o meu médico. No final da tarde, estava a sentir-me um pouco em baixo. Ainda ninguém me tinha dado os parabéns.
             Quando, ao fim da tarde, não podíamos ajudar mais, fomos andando para o quarto. Quando abro a porta, ouço “surpresa!”. Já poderia ter adivinhado uma coisa destas, mas nem me passou pela cabeça que o fizessem. Divertimo-nos imenso. Já é noite e a Leonor já dorme. Acho que vou fazer o mesmo.



          O Diário De Rui
1 De Setembro: Estes últimos dias foram muito tristes. Ainda era 29 de Agosto quando acordei e reparei no céu cinzento, cheio de nuvens. No dia anterior tinha sido um dia lindo de sol que até custava a acreditar que ia chover. Meti-me no carro e fui para o hospital. Como sempre, entrei pelas urgências para dizer “olá” aos meus colegas. Ao passar por eles notei que estavam todos um pouco tristes, e nem deram pela minha presença.
            Apressei-me a chegar ao quarto de Leonor e Júlia. Quando entrei, estaquei, espantado.
            O quarto parecia que tinha sido assaltado. As mesas-de-cabeceira foram deitadas ao chão, os lençóis da cama revirados, os candeeiros partidos no meio do chão. E a Leonor sentada, no meio do quarto, abraçada aos joelhos, a balouçar para a frente e para trás.
            Fui ter com ela. Agachei-me e perguntei-lhe o que acontecera. Ela respondeu-me com a voz mais triste que alguma vez na vida tinha ouvido:
            - Ela morreu.
            Nesse momento percebi por que o quarto estava assim. Abracei-a e chorámos os dois.

            No dia seguinte, foi o funeral. Leonor não foi. Quando cheguei, avisaram-me que o médico de Leonor queria falar comigo e fui, sem passar pelo quarto dela. Quando entrei no consultório, vi o doutor com um envelope na mão. Virou-se para mim e deu-me o envelope.
            - Deite isto fora.
            - O que é? – ele não respondeu. Vi o nome de Leonor no envelope. Parecia a letra de Júlia. Não disse nada e saí. Enquanto andava pelo corredor, decidi que não faria nada à carta. Entrei no quarto de Leonor e dei-lhe a carta. Sentei-me no lado oposto da cama em que ela estava para ter a certeza de que ela lia a carta. Passado algum tempo, ao ver que eu não arredava pé, pegou na carta e leu-a.

Carta De Júlia Para Leonor
              Olá, Leonor. É óbvio que quando estiveres a ler esta carta, que eu já me tenha suicidado.
            Sei que deves pensar que te enganei e que te deixei sozinha neste mundo a sofrer e a lutar por algo que parece nunca ter fim. Mas não estás sozinha, há mais pessoas do que julgas que gostam e olham por ti. Os teus pais, o Rui, os médicos, tanta gente. E eu? Eu estarei sempre aqui a olhar por ti.
            Estarei a ver e a ouvir se cumpres a nossa promessa, que nunca deve ser quebrada: sê feliz. O que eu fiz foi apenas uma escolha que há muito tinha tomado. Espero que não tomes o caminho mais fácil, como eu fiz. Mas, de qualquer maneira, aqui te espero com um sorriso.                                             JÚLIA


          O Diário De Rui
Quando ela acabou de ler a carta, levantou-se, calçou-se, vestiu um casaco e pegou numa caneta que tinha à mão.
            - Leva-me ao cemitério.
            - Mas agora?
            - Sim.
         Dirigimo-nos o mais rapidamente para o cemitério. Quando chegámos, indiquei-lhe onde estava a campa da Júlia. Não fui com ela, para lhe deixar algum espaço. Mas pude ver o que ela fez claramente. Quando chegou, destapou a caneta e ajoelhou-se ao lado da campa. Ao lado do nome, ela escreveu “Para sempre a tua melhor amiga, Leonor”.

                                                              FIM

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